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18 janeiro, 2007

Os monstros somos nós
Por Fran Pacheco

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Nunca houve e provavelmente não haverá mais um filme de horror como Freaks (1932). Monstros, como é desconhecido por aqui, ou Parada de Monstros na terrinha, nunca foi lançado em circuto por estas bandas, a não ser (sugestivamente) mutilado, desmembrado e retalhado, no meio de antologias do gênero.

Esta pièce-de-resistance do mestre do terror Tod Browning – que já dirigira as perversidades de Lon Chaney e no ano anterior consagrara Belão Lugosi em Drácula – é o filme maldito por excelência. Talvez “o” filme maldito. Freaks ficou apenas alguns dias em cartaz – em verdade o mais incrível é que tenha conseguido estrear, e sob o prestigioso selo da MGM.

Monstros foi a grande aposta fracassada do arrojado produtor Irving Thalberg para desbancar do topo das bilheterias as critaturas da rival Universal (algumas que o mesmo Browning ajudara a criar). O fato é que em sua curtíssima temporada o filme sofreu toda sorte de corte, reedição, edulcoramento, protestos das ligas de decência, boicote, censura, até ser considerado um caso perdido pelo chefão da Metro, Louis B. Mayer, e ser despachado para o limbo, arrastando consigo a então prestigiosa carreira do excêntrico Browning.

Mas que se abram as cortinas. O público é avisado logo de cara que não haverá truques. Nada de criaturas mecânicas como em King Kong. Nada de Max Factor, o maquilador oficial de Boris Karloff em A Múmia. Nada de vampiros com pó-de-arroz e batom, lobisomens com apliques, boitatás, chupa-cabras e o diabo a quatro. O inferno é logo aqui, e estamos diante de uma espécie de sucursal do Circo de Horrores do infame P.T. Barnum – e que deixaria o próprio babando. Só com seres reais, “que vivem e respiram”, conforme o apresentador. Mas que, a não ser por alguns acidentes de nascença, poderiam ser como você.

Com o perdão da licença poética, o dream-team escalado para o pesadelo definitivo de Browning era formado pelos maiores astros do meio, a maioria interpretando a si próprios: Um sortimento de anões acondroplásicos e pituitários. Três microcéfalos – duas mulheres e um homem, Schilitzie, travestido para facilitar-lhe a higiene – todos com o crânio um pouco maior que um punho cerrado. Todos retardados mentais. Um homem-esqueleto de deixar no chinelo qualquer anoréxica (se tiver 30 quilos é muito). Na vida real, o valente era casado com uma mulher de 240 quilos, uma jogada de marketing bastante difundida. Uma mulher deformada, com aparência de ave, que dança a caráter na cerimônia de bodas entre os freaks – cena citada por Bertolucci em Os Sonhadores. Um(a) hermafrodita, ainda que não se possa ter muita certeza. Uma mulher barbada, mal-encarada, por sinal grávida – e que vem dar à luz durante o filme. Duas irmãs siamesas fundidas pelo quadril e que têm sempre os mesmos sentimentos. Um altivo homem-tronco, cujo corpo termina abruptamente logo abaixo das costelas; Para rebater, uma mulher sem braços.

E o mais perturbador de todos, um certo Príncipe Randian, o Homem-Lagarta, veterano do staff de Barnum. O príncipe resumia-se a uma cabeça hindu, com forte sotaque (mal dá pra entender sua única fala), unida a um tronco apertado em panos, desprovido de qualquer membro, porém capaz de preparar e acender o próprio cigarrinho de palha, só com a boca (na vida real Randian era mulherengo e tinha filhos).

Em verdade os freaks são os heróis da história. Os sórdidos vilões são os membros “normais” e belos da trupe: a dançarina voluptuosa e o halterofilista cafajeste. A dupla decide aplicar um golpe do baú no anão Hans, herdeiro de uma bolada. É claro que o pequeno otário se empolga com a lábia da beldade e contrai matrimônio, num regabofe onde os demais freaks a aceitam no seio do grupo, brindando: “One of us! One of us!”

Em plena lua-de-mel, a víbora não só aplica um reluzente par de corninhos na testa do marido como começa a envenenar o diminuto cônjuge em doses nada homeopáticas. Até que os freaks descobrem a torpe armação e decidem tirar a história a limpo. Nos letreiros de abertura, Browning já tinha avisado que entre os freaks valia o “mexeu com um, mexeu com todos” (olha aí o universal espírito de corpo).

Na excepcional catarse final, o enfezada trupe persegue a golpista e o amante, sob uma torrencial tempestade elétrica – os corpos, deformados ou não, misturando-se à lama e ao musgo. O halterofilista é trucidado (na versão preliminar, para testes, o biltre era emasculado e terminava seus dias... cantando em falsete!). Já a dançarina leva a pior. É desfigurada e desmembrada pelos freaks e termina “fisicamente” como um deles (“One of us! One of us!”). Convertida numa espécie de mulher-pato, exibida meio que a contragosto, num chiqueiro.

Exploração? Pode ser, ainda que no documentário que acompanha o DVD só a mulher-barbada solte os cachorros contra a produção. Os demais sobreviventes (alguns chegaram até os 80 e poucos anos) encaravam tudo como um job a mais (talvez sem muita opção). Todos eram amigos ou conhecidos de Browning, ele próprio egresso dos picadeiros, mafuás e “sideshows” de antanho. Todos estavam ali talvez não tanto para nos chocar ou nos comover (seria interessante ver a reação de uma platéia contemporânea) mas para expor, através de suas deformidades, a singela moralidade (afinal, é uma fábula) à luz da projeção: os monstros somos nós, do outro lado da jaula.

(Artigo nunca publicado na Cahiers du Cinema)