Image hosting by Photobucket

03 maio, 2005

Edgard - um conto
Por Fran Pacheco

Preso no engarrafamento de volta para casa, Edgard decidiu relaxar e ouvir um CD. Descobriu que a mulher trocara o disquinho de Jazz (“The Very Best of John Coltrane”) pelo “A Bíblia na Voz de Cid Moreira – Vol. XIX”. Tudo bem que Cid falasse ex cathedra, com conhecimento ao vivo dos acontecimentos narrados, mas aquela voz tonitruante – plena de eco e vibrattos de estúdio – soou para Edgard como todo o poder e a fúria de Jeová contra algo que ele, pobre Edgard, fizera mas ainda não confessara a si próprio. O mais desconfortante para o pecador Edgard era a sensação iminente de que, no meio do Deuteronômio, Cid fosse tascar um “Mister M, você é mesmo espada!”. Edgard, perdido na vida, moralmente esmagado pelo vozeirão do homem com o maior saldo de FGTS do país, desligou o CD e buscou abrigo em Sodoma e Gomorra – aqui representadas pela Voz do Brasil.

Chegando ao lar, Edgard, completamente chapado pela superexposição aos discursos parlamentares, decide ver o Jornal Nacional. Não que ele procurasse por mais Brasília ou pelo espectro zombeteiro de Cid em algum desvão do cenário futurista. Edgard queria ver gols. Nada de política, não, nunca mais. Só futebol, que é o Grande Nada, a irrelevância em chuteiras, um vício contraído antes da idade da razão, mas que para Edgard era algo bom e que o fazia sentir-se bem.

“A seguir os gols da rodada. Voltamos em trinta minutos, após a propaganda partidária obrigatória.”

Edgard mal teve forças para se levantar do puff em que estava refestelado. Por suas pupilas entraram, implacáveis, imagens promocionais do PTB, o decano das agremiações fisiologistas do país. Há poucos dias o mesmo Edgard fora exposto a trinta minutos de PFL, o sumidouro moral da nação. E, pouco antes, a um partido nanico capitaneado pelo macabro Dr. Mangabeira. Mas era o PTB quem dominava os sentidos do imóvel Edgard. “Conheço esse papagaio-de-pirata que está sorrindo no meio dos caboclinhos e puxando o saco do governador”, tremeu-se. Era o “Colecionador”, assim chamado por seu invejável acervo de CPFs. “Ele está a apenas um testículo de distância do Governo!”

Edgard, enojado, desviou o olhar para a janela. Carlos Lacerda estava lá, aboletado no parapeito, resmungando “chem-chem”, espanando as pequenas asas pretas. Edgard, tomado pelo horror, tentou chamar pela esposa, “Sônia, Sônia!”, mas a língua já estava enrolada. Incapaz de fechar os olhos, seu derradeiro movimento voluntário foi em direção à TV. Não conseguiu mais desviar o olhar daquela propaganda política. Ouviu apenas o corvo Lacerda crocitar a sentença fatal:

“Libertar-se-á de nós nunca mais. Nunca mais. Nunca mais...”