Antologia da vaia (3)
Por Fran Pacheco

Onze de janeiro de 1985. Dia inaugural do primeiro Rock in Rio. As hordas de visigodos e ostrogodos que tomaram de assalto os gramados de Jacarepaguá à espera dos grãos-mestres do Iron Maiden e Whitesnake mal acreditaram em suas dilatadas pupilas. Um senhor meio careca, já no avançado dos anos, trajando um coletinho de couro repleto de tachinhas despontou no palco e martelou com toda pinta de bad-boy: “Preciso lembrar... que eu existo... eu existo, eu existo...”. Os hunos não entenderam nada e limitaram-se a ruminar o próprio vômito. Os mongóis começaram a ver aquilo como uma séria provocação a seus deuses ancestrais. “Hey mãe! Não sou mais menino...”, cantarolava, absorto diante de sua imaginária platéia de tietes do programa Jovem Guarda, o veterano Erasmo Carlos. Aquilo não tinha como dar certo.
Nota: horas antes, as caravanas de metaleiros foram submetidas, sadicamente, a um pré-show de Ney Matogrosso, que além de trocar de roupa em pleno palco, respondeu gentilmente aos apupos com um “vão se foder”. Em falsete. Aquilo despertou a cólera dos vikings.
Quando o Tremendão arrematou com “um dia gatinha manhosa eu prendo você / no meu coração...”, foi a gota de nitroglicerina na fúria secular dos bárbaros. A suposta profecia de Nostradamus, divulgada naquele verão, parecia estar prestes a se confirmar: “um grande encontro de jovens na América do Sul perto do final do século XX terminará com uma tragédia que causará a morte de milhares de pessoas.”
Felizmente, o vaticínio era pura invenção de bar e a hecatombe se limitou a uma descomunal vaia de 1 Megaton, com uma tempestade de pedregulhos e imprecações na língua das feras, que praticamente enxotaram o Tremendão da ribalta. O tio-avô do rock quase foi esfolado vivo naquela noite.
Os organizadores do evento não aprenderam nada, absolutamente nada, com o incidente. Na segunda edição do festival, em 91, lá estavam os devotos de Judas Priest, Guns n’ Roses, Megadeth, Queensryche, e Sepultura diante do pop-rock-experimental-cabeça de Lobão. Aquele festival ficou marcado menos pelas vaias e mais pelas gargalhadas de desprezo provocadas por atrações polichinelas, como Inimigos do Rei (com os hits “Adelaide, Minha Anã Paraguaia” e “Barata Kafka”, pfiu). O limítrofe Supla e o zumbi andrógino Serguei também deram o tom de freak show ao evento.
Mas o, digamos, choque de estéticas, ficou reservado ao Sr. Lobão, que resolveu estimular os metaleiros com a... bateria da Mangueira! O contra-ataque ideológico foi rápido e esmagador, com uma saraivada de latas cheias de urina e uma vaia animalesca, das maiores ouvidas desde a queda de Roma. Ao pop-roqueiro-cabeça só restou uma opção: mostrar o eloqüente dedo para a platéia ensandecida e refugiar-se no Tibete.
Quem não fugiu do confronto, na terceira edição do evento, em 2001 foi o baiano Carlinhos Brown. Jogado às feras, para abrir mais um show de rock pesado, Carlito Marrom despertou, com sua batucada, a total indiferença dos metaleiros. Não satisfeito com os rumos da coisa, o timbaleiro decidiu fazer sua performance no meio da platéia, o que de fato animou as bestas-feras – a trucidá-lo. Evocando a proteção dos deuses, Mr. Marrom avisou às latas que lhe eram atiradas “Podem atirar! Eu sou da paz! Nada me atinge!”. Atingia sim, e o genro mais famoso de Chico Buarque praticamente quebrou o recorde dos 100 metros rasos para escapar com as tranças inteiras daquele corredor polonês de latas e dejetos despejados pela horda descontrolada.
De volta ao palco, Carlitos - após checar que estava com todos os membros no lugar - seguiu sua apresentação e pediu para quem fosse “da paz” que levantasse a mão. A legião de Trolls levantou os dedos. “Não adianta gostar de nada quando se é ignorante.”, ponderou o tribalista, para concluir sugestivamente: “E o dedinho pode enfiar no traseiro!”
Definitivamente, nem as vaias nem os baianos são mais os mesmos.
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